“A cultura do novo capitalismo e a aniquilação do talento”. Por Saulo Carvalho
por Saulo Carvalho
Hoje quero compartilhar uma leitura que fiz do livro “A cultura do novo capitalismo”. Geralmente, escrevo artigos relacionados ao tema da educação, mas hoje me chamou a atenção as questões relacionadas ao livro de Richard Sennett. Posso dizer que o mesmo é uma leitura obrigatória para entendermos o nosso tempo de “uberização”, terceirizações e quarteirizações do trabalho. A sensação de mal-estar permanente e insegurança que nos persegue nos dias atuais, refletem o estado de coisas da produção capitalista e Sennett vai buscar entender como tudo isso interfere diretamente no desenvolvimento do caráter das pessoas. As consequências da instabilidade do sistema são vistas numa perspectiva de desvalorização das relações estáveis dos sujeitos, o que produziria um sentimento permanente de inutilidade e de fracasso. A atual forma do capitalismo criou uma “nova cultura”, na qual as instituições e as pessoas aprendem a descartar, a abrirem mão, a não se apegar a nada, cujos vínculos são trocados como se trocam mercadorias em uma prateleira de supermercado.
O “novo capitalismo” teria enfim descartado a ideia de ascensão pelo talento, já que é possível manter o sistema econômico com total eficiência, dependendo de um número cada vez menor de pessoas. Já não importa o que cada indivíduo realizou ou acumulou, mas, sim, se ele tem recursos internos para se adaptar à celeridade com que os novos quadros se abrem e se fecham. Em outras palavras, interessa saber se o indivíduo é capaz de abandonar a si mesmo e sincronizar com aquilo que dele esperam. A palavra de ordem é abdicar-se. E assim, chegamos ao que os managers de recursos humanos denominam de resiliência. Ter resiliência seria em termos práticos, aguentar o assédio moral cotidiano, ter sempre um alto desempenho, ficar sempre atualizado, ganhar um salário bem abaixo das expectativas e estar pronto para ser descartado, quando seus serviços forem considerados inúteis.
Segundo Sennett, o fantasma da inutilidade se sustenta através de três forças: “a oferta global de mão de obra, a automação e a gestão do envelhecimento” (p. 84). Em busca de uma maior lucratividade o capital acaba migrando-se para países onde a mão de obra é mais barata. Isso não quer dizer, porém, que qualquer país pobre poderá se “beneficiar” da empresa capitalista. Nesse caso, entra em funcionamento, o que Sennett chama de “seleção cultural”, onde são escolhidos os países de economias de salários mais baixos e de trabalhadores muitas vezes altamente qualificados. No entanto, os trabalhadores mais capacitados desses países, são contratados para desenvolver atividades de menor complexidade, “Ao norte da fronteira, trabalhadores da linha de montagem das maquiladoras mexicanas talvez pudessem trabalhar como chefes ou subchefes de turma” (p.85).
O crescimento da utilização das tecnologias de automação levou o mercado de trabalho a uma crise. O capitalismo passa a empregar cada vez mais as máquinas inteligentes, à medida que elas proporcionam um aumento relativo da produtividade com o mínimo de investimentos em mão de obra. Atualmente as tecnologias atingiram um estágio de desenvolvimento que conseguem fazer coisas que o ser humano seria incapaz. O fantasma da inutilidade se materializa, segundo a fala de Sennett, à “medida que as máquinas passam a fazer coisas de valor econômico de que os seres humanos não são capazes”.
Outro fator que Sennett explora no seu livro é a maneira como as coisas se deterioram rapidamente. As especializações e capacitações que antes se configuravam como um bem durável tornam-se, cada vez, mais substituíveis e desatualizadas. A experiência valorizada em outros tempos torna-se sinônimo de improdutividade na economia moderna. O novo capitalismo não dá espaço ao envelhecimento, agindo de maneira destrutiva no tecido social à medida que desvaloriza todos aqueles que sejam, e que venham a se tornar experientes.
O novo capitalismo mudou profundamente as relações sociais, alterando o sentido de determinados valores que se mantinham consolidados dentro da cultura do trabalho. As ideias de mérito e perícia ganham outra significação nessa ordem social. A perícia valorizada pela capacidade do sujeito em fazer uma coisa bem feita, pelo simples prazer de fazê-la, tinha como características a especialidade na função ou atividade a ser executada. Para adquirir tais habilidades, o sujeito precisaria de tempo para se aprofundar e se capacitar em suas especialidades. A perícia torna-se incompatível com a produção moderna, onde as instituições constantemente alteram a maneira de gerir e produzir em curto espaço de tempo. Não é interessante para essas instituições o quão bem feito o sujeito produz ou realiza tais atividades, mas o quão rapidamente o sujeito consegue se adaptar às novas condições de produção.
O mérito é outro valor que tem o seu sentido alterado na nova configuração do capital. Entendido como uma forma de prestígio moral, “o valor pessoal era de terminado por um julgamento impessoal”, é visto na sociedade moderna como um processo de avaliação no qual a perícia ou o talento da pessoa diz respeito não à sua capacidade de executar com qualidade uma tarefa a ela designada, mas sim à sua “capacidade de transitar de um tema a outro, de um problema a outro”.
De certa forma, Sennett discute os efeitos da estruturação do capital na sociedade moderna e suas implicações no campo da cultura e da subjetividade dos sujeitos. Nesse novo cenário, pouco consistente e intenso, as pessoas suportam aquilo que Sennett chama de “o fantasma da inutilidade”. O tédio, a impotência, a carência de utilidade se transformam nos sintomas da cultura presente. O que é ser um sujeito capacitado? O que é ter talento? Essas indagações, que podíamos responder com garantia, apoiados na experiência, nos currículos e nos ganhos acumulados, hoje se tornaram complexas e embaraçosas. O trabalho tem se tornado cada vez mais uniforme e as pessoas, cada vez mais descartadas.
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Sobre o autor: Saulo Carvalho é professor do curso de Pedagogia na UNICENTRO, campus Guarapuava-PR e Doutor em Educação Escolar pela UNESP-Araraquara; escreve semanalmente no Jornal Caboclo.
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Excelente texto Dr. Saulo Carvalho!
É um privilégio tê-lo como professor, com tamanha competência e responsabilidade naquilo que está fazendo, com certeza nossa educação precisa de agentes comprometidos com essa importante tarefa de transformação, preocupados realmente, com o futuro de nossa nação, assim como o faz!