Jornal Caboclo

da região do Contestado, SC

Colunas e Opinião

Um brasileiro traduzia filmes japoneses, escreve Edison Porto

A interessante história do Prof. Ricardo Mário Gonçalves

Por Edison Porto

Em 1964, quando eu tinha 10 anos, era fascinado pelo herói que voava defendendo o planeta Terra de ataques alienígenas, era o National Kid, o primeiro super-herói japonês a fazer sucesso no Brasil. No final deste artigo o link para o primeiro episódio de National Kid, num reedição da década de 1970.

Alguns anos depois, passei minha adolescência com muitos amigos nisseis, com quem treinava Judô, ou fazia o Ginasial. Com eles eu frequentava três cinemas que existiam no Bairro da Liberdade, na Capital de São Paulo. Neles só passavam filmes japoneses das produtoras Toho, Daiei, Nikkatsu, Shôchiku, etc. Eram o Cine Jóia, o Cine Nippon e o Cine Niterói, este último na Av. Liberdade eu achava bem chique, lá tinha uma balança para nos pesarmos, as atendentes elegantemente uniformizadas e sempre tinha um chazinho grátis para se aproveitar no intervalo, ou na saída.

Eu gostava muito do Cine Nippon, na Rua Conde de Sarzedas, porque nele eram distribuídos panfletos em folha dupla, com a sinopse e ficha técnica dos filmes, devo ter muitos deles guardados nalguma caixa. Ainda me lembro dos nomes de muitos atores e atrizes daquela época.

Eram filmes de todas as categorias: românticos contemporâneos; histórias de samurais; filmes de guerra; comédias e até mesmo filmes de terror (que para mim eram até engraçados). Produções muito boas, de bela fotografia. Através destes filmes eu fui aprendendo sobre a língua japonesa, os costumes e a história do país do sol nascente.

Muitos anos depois, conheci no Templo Higashi Honganji, no Bairro do Ipiranga em São Paulo, um Monge Budista que lá fazia palestras para quem quisesse conhecer a Escola da Terra Pura, Budismo Japonês que segue os ensinamentos do Mestre Shinran, era o Prof. Ricardo Mário Gonçalves. Nasceu ali nossa amizade. Homem de grande cultura, é fluente em Japonês, domina a língua francesa, com facilidades para o Italiano e o Espanhol, entende o Inglês, tem bons conhecimentos de Latim, Grego e um pouco de Pali e Sânscrito, estas duas por causa do seu trabalho de traduções de textos budistas do japonês e do chinês literário, para o português, pois quando há um texto original em sânscrito ou pali, faz o devido cotejo. O Prof. Ricardo lecionava História das Religiões na USP, curso que assisti como seu convidado.

Certa noite ele e sua saudosa esposa, Monja Yvonete, nos convidaram para um jantar em sua casa. Lá, repentinamente, num “flash back”, me veio à mente a imagem da tela de um cinema com os dizeres “Tradução: Ricardo Mário Gonçalves”. É interessante estas coisas da mente, das quais tenho outras experiências curiosas. Mas será que era possível?  Perguntei e fiquei pasmo, eu estava jantando com um amigo que descobri ser o tradutor dos filmes que eu tanto gostava na adolescência, inclusive do famoso National Kid da minha infância. O Prof. Ricardo foi quem traduziu o primeiro episódio e foi ele quem inventou o nome em português dos inimigos alienígenas: INCAS VENUSIANOS.

Prof. Ricardo e sua esposa Monja Yvonete

O Prof. Ricardo é um autodidata e aprendeu a língua japonesa entre seus 14 e 18 anos, com o auxílio de colegas da escola filhos de japoneses e no relacionamento com os familiares deles. Ele utilizava gramáticas, aprendeu os caracteres japoneses, lia muito mangá (os gibis japoneses) e, também, ouvia muito programas de rádio em japonês. Quando se aperfeiçoou, trocou os mangás por livros.

Confiante no nível de conhecimento da língua japonesa, com a cara e a coragem, visitou as companhias de cinema japonês, falando na língua deles e se ofereceu para traduzir filmes.  Na época, algumas empresas do cinema japonês tinham escritórios na cidade de São Paulo, como a Shôchiku e a Toho que o contratou.

O escritório da Toho ficava na Rua São Joaquim, no Bairro da Liberdade, no cine Tokyo, onde é hoje o Teatro Liberdade, pertencente à Grande Loja Maçônica do Estado de São Paulo, que fica bem em frente. Diz o Prof. Ricardo: “Da janela do escritório da Toho, eu via a porta do Palácio Maçônico e ficava divagando, imaginando os mistérios que se passariam lá dentro.”

Além de traduzir os filmes, ele se dedicava à música folclórica japonesa e ao canto do Teatro Clássico Japonês “Nô” (utai). Participava do Grupo Hakuyôkai dirigido pelo arquiteto Dr. Takeshi Suzuki, professor da Universidade Mackenzie. Cantavam peças de Nô (utai) e faziam apresentações no Pavilhão Japonês do Ibirapuera. Além de cantar, o Prof. Ricardo batia o tambor japonês “Taikô”. O que continuou a fazer nos templos budistas, onde se pratica o “bom-odori” (dança votiva para os mortos).

O Prof. Ricardo Mário Gonçalvez traduziu basicamente os filmes da Toho, mas fez traduções para outras companhias, como por exemplo a série National Kid, citada anteriormente. O trabalho de tradução de um filme durava de uma a duas semanas. O primeiro passo era a leitura do “script” (em japonês “daihon”). Depois assistia ao filme com o “daihon” na mão, conferindo os diálogos frase por frase.

Depois de fazer a tradução, havia o trabalho de reduzi-la, não podia ficar uma tradução literal, porque o espaço para as legendas era muito pequeno, as frases longas não cabiam nele. Aí é que a maior parte dos tradutores encontrava a maior dificuldade, não sabiam reduzir e o Laboratório de legendação mutilava impiedosamente as frases longas, sem dar a mínima atenção ao sentido.

Os Sete Samurais de Akira Kurosawa

A última fase do trabalho era assistir novamente o filme, com o “daihon” e o rascunho da tradução na mão, para corrigir eventuais erros. Finalmente o filme ia para o Laboratório executar o trabalho técnico de colocação da legenda.

O Prof. Ricardo conta que se divertia bastante inventando soluções criativas quando traduções ao pé da letra eram impossíveis de fazer. Aprendeu a fazer o que ele chama de “belles infidèles” (belas infidelidades), traduções que se afastam do literal, para salvar o sentido da cena. Esta experiência acabou sendo muito útil hoje em dia, para o trabalho que faz de traduções de textos budistas. Nosso querido tradutor tem como modelo e patrono, o grande tradutor Kumarajiva¹ que fazia a mesma coisa. Em homenagem a Kumarajiva, deu ao seu grupo de trabalho com traduções de “Oficina de Traduções Kumarajiva”.

Os filmes que mais gostou de traduzir foram os grandes clássicos de Akira Kurosawa. Os gêneros que mais gostava eram os filmes ambientados no Japão pré-moderno e os filmes de guerra.

Nota¹: Explica o Prof. Ficardo: Kumarajiva de Kucha, um pequeno Estado na Ásia Central, um meio caminho entre a China e a Índia, na chamada Rota da Seda. Kumarajiva recebeu o título dado aos tradutores budistas na China daquela época de “Mestre das Três Coleções (anos 344-413). As Três Coleções são como três coleções de textos canônicos: Sutras (Pregações), Vinaya (Regras de Disciplina) e Abhidharma (Tratados Filosóficos).  

Mestre Kumarahiva costumava dizer: “Sou um lótus nascido na lama, quando olharem para mim, vejam a flor, não o lótus”. Prof. Ricardo continua: Venero Kumarajiva como mestre, modelo e inspirador. Sinto-me um Kumarajiva na vida. Ele não traduziu só o Sutra do Lótus, traduziu o Sutra Amida (principal texto sagrado da Escola da Terra Pura (Jodo Shinshu) da qual sou  monge, além de traduzir o Sutra do Ensinamento de Vimalakirti e os principais Sutras e Tratados sobre o Vazio e sobre a Perfeição da Sabedoria.

Nota do Editor: Até esta edição esta história não foi divulgada, agora o Jornal Caboclo a registra e a deixa para o conhecimento de japoneses, seus descendentes brasileiros e todos que amam a cultura Japonesa.

Mini curriculum vitae do Prof. Ricardo Mário Gonçalves: Historiador nasceu em 11/jun/1941 em São Paulo, SP.  Aposentado da USP em 1995, onde atuou como Professor De História, hoje atua no Templo Budista Higashi Honganji, comandando a Oficina de Traduções Kumarajiva de textos Budistas, do japonês para a língua portuguesa.

VIDA ACADÊMICA:

Monge Prof. Ricardo Mário Gonçalves

 Bacharelado e Licenciatura em História pela USP em 1964. Doutoramento em História Medieval pela USP em 1971. Livre-Docência em História do Extremo Oriente pela USP em 1977. Concurso para Professor Adjunto no Departamento de História da USP em 1986.

VIDA PROFISSIONAL:

Docente do Departamento de História da USP de 1965 a 1995, tendo ministrado cursos dePós-Graduação e atuado como Orientador (Mestrado e Doutorado) de 1972 a 1995.

Principais cursos ministrados (Graduação):  História Antiga (Grécia, Roma, Oriente Médio), História do Extremo-Oriente  (Índia, China e Japão), História da África, História das Religiões, Introdução à História da Franco-Maçonaria.

Missionário Budista na Associação Religiosa Nambei Honganji Brasil Betsuin desde 1981. Pesquisador do Instituto Budista de Estudos Missionários desde 1981.

Viagens de estudos ao Japão, Estados Unidos, França, Inglaterra, Espanha, Portugal, Grécia, Índia, Egito e Israel.

 Membro da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica.                                                                                                                                               Membro da International Association of Shin Buddhist Studies.

PRINCIPAIS TRABALHOS PUBLICADOS:

Textos Budistas e Zen-Budistas, S. Paulo, Cultrix, 1967 (1ª ed.) e 1976 (2ª ed.).

YUIEN- Tannishô – Tratado de Lamentação das Heresias – Tradução, Estudo Introdutório e Notas, S. Paulo, Templo Higashi Honganji, 1974 (1ª ed.) e 1987 (2ª ed.). O Caminho do Despertar –  Uma Introdução ao Budismo, S. Paulo, Instituto Budista de Estudos Missionários, 1992.

Quintino Bocaiúva Nº 10 – A Trajetória de uma Loja Maçônica Paulista (1923-1998), S. Paulo, Arquivo do Estado, 1998.

A Ética Budista e o Espírito Econômico do Japão, S. Paulo, Ed. Elevação, 2007.                                                                                                                              

Numerosos artigos em revistas acadêmicas e na imprensa em geral, no Brasil e no Japão. Numerosas comunicações apresentadas em congressos científicos no Brasil, Japão e Estados Unidos.

Para contatos com o Prof. Ricardo: e-mail: mario.tln@terra.com.br ou yuima.raju@gmail.com

O primeiro episódio de National Kid, traduzido pelo Prof. Ricardo que criou a expressão Incas Venusianos:

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Sobre o autor: Edison Porto, administrador pela Eaesp/FGV; MBA em Finanças pelo IBMEC-SP, bacharelando em Direito e Jornalismo; Técnico em Agronegócio pelo SENAR SC; Membro da Associação dos Amigos do Museu do Contestado de Caçador, da Associação Cultural Coração do Contestado de Lebon Régis, da ACIJO  Associação Caçadorense de Imprensa e do Núcleo de Comunicações da ACIC Associação Empresarial de Caçador. Membro dos Conselhos Municipais de Turismo e de Cultura de Caçador. Participa da ONG Gato-do-Mato. Ocupa a cadeira nº10 da Academia Caçadorense de Música. Editor do Jornal Caboclo.

P.S.: Os conceitos emitidos por artigos ou por textos assinados e publicados neste jornal são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

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Mensagem do editor:

Textos e imagens de propriedade do Jornal Caboclo podem ser reproduzidos de modo parcial, desde que os créditos autorais sejam devidamente citados.

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4 comentários sobre “Um brasileiro traduzia filmes japoneses, escreve Edison Porto

  • Parabéns por divulgar essas maravilhosas lembranças do mestre e monge Prof. Ricardo. Fui seu aluno de História do Extremo Oriente, no início da década de 1970 e fui assíduo frequentador dos cinemas citados no artigo. Muito obrigado por ter propiciado essa leitura saborosa. Abraços.

    • Grato Sr. Takahashi, é provável que tenhamos nos cruzado pela USP ou pelos cinemas japoneses da Liberdade. Escrevi também dois artigos sobre uma viagem ao Japão em 1979 que talvez possa lhe interessar. Abraços

  • Boa noite Edison, tudo bem! é sobre a foto de capa do meu grupo publicada no Jornal caboclo, Peço que de os créditos a imagem do Nacional kid na bandeira do Brasil, que é foto de capa da minha página e de propriedade intelectual minha.

    • Caro Sérgio, eu lhe daria os créditos com muito prazer e ainda faria propaganda da sua página, porém em mensagem no Facebook vc preferiu que eu tirasse a foto do artigo, o que prontamente atendi. Desculpe o inconveniente.

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