Singela Alsácia, escreve Lineimar Martins
Ao leste da França, a Alsácia é próxima da Alemanha e da Suiça
Por Lineimar Pereira Martins
Esse ano faz dez anos que me instalei na Alsácia com minha família. Reticente no início, fui pouco a pouco me rendendo ao charme desse lugar onde a história é onipresente. Costumo dizer que, aqui, a vida é como deveria ser: singela e profunda. Florestas coabitam com campos de trigo, de milho e vinhas entrecortados por pequenas cidades floridas, lindíssimas, onde coloridas casas de enxaimel¹ azuis, verdes, amarelas, vermelhas e lilás, ornadas com gerânio e flores do campo, confirmam a presença humana. A natureza aqui é respeitada e ritma a vida local, vivida sem pressa. Sua identidade particular, híbrida, meio francesa meio germânica, atribui a esse cantinho da França características únicas. Herdou o que essas duas culturas têm de melhor: organizada e humana, respeitosa e de bem com a vida.
A Alsácia é a menor região da França composta de apenas dois departamentos, o Bas-Rhin ao norte e o Haut-Rhin ao sul. Parece paradoxal que “Baixo Reno” se encontre no norte e o “Alto Reno” no sul, mas essa alcunha se refere à nascente do rio Reno que marca a fronteira com a Alemanha ao norte e com a Suiça ao sul. O encontro desses três países se convergem na região chamada de As Três Fronteiras.
É uma região essencialmente agrícola, embora o turismo ocupe um lugar de destaque na economia local, principalmente para as dezoito cidades que compõem a rota dos vinhos que começa em Thann, ao sul e termina em Marlenheim, ao norte, e inclui Colmar, Riquewhir, Kaysesberg, entre outras pequenas joias arquitetônicas. Cada uma dessas cidades possui características próprias, apesar de terem, todas, um charme comum: parecem ter parado no tempo com suas casas medievais, suas ruelas de paralelepípedo e um perfume quase permanente de biscoitos saindo do forno.
A Alsácia possui uma forte identidade regional, com uma cultura própria que inclui uma língua, o alsaciano (um dialeto alemão), e uma história particulares, distintas, ao ponto de referirem-se aos franceses do resto da França como “franceses do interior”.
É uma região tradicionalista, a única região francesa na qual o regime de concordata ainda está em vigor, ou seja, a separação entre a Igreja e o Estado, bem marcada no resto da França onde a laicidade é o pilar da identidade política do país, foi incompleta aqui. Consequentemente, o ano é pontuado de festas, essencialmente católicas, cada uma marcada por rituais específicos, que encontram seu ponto culminante no período de Natal, cujos mercados, conhecidos até no Japão, recebem, cada vez mais, turistas do mundo inteiro.
A cozinha alsaciana cristaliza esse hibridismo franco-alemão na qual frios, linguiças, patês e embutidos diversos são preparados com técnicas da cozinha francesa, essa última também visível na delicada apresentação dos pratos cuja mise en scène é digna de uma natureza morta, revelando o savoir-faire² francês. O prato mais conhecido da região é o chucrute, repolho fermentado cozido com zimbro, acompanhado de toucinho, linguiças, salsichas, carne de porco defumada e batatas cozidas, servido em festas populares, mas que também está presente em cardápios de restaurantes alsacianos chiques ou tradicionais. A cozinha alsaciana vai, porém, muito além do chucrute: fleischnakas, lewerknepfles e baekeoffes integram a culinária regional que apresenta, inclusive, sua massa própria, o spaetzle, e o pretzel, símbolo da região. Sem esquecer de mencionar a muito popular flammekueche, que parece uma pizza, mas cuja massa fina não leva fermento, é gratinada com toucinho e tem sido revisitada com diferentes recheios inclusive doces. No Sundgau, no sul da Alsácia, devido ao grande número de lagos ali existentes, o prato típico por excelência é a carpa frita servida com batatas fritas que recebeu seu roteiro oficial intitulado “a rota da carpa frita”.
Mas o que é realmente irresistível aqui na Alsácia são os doces. Confeitarias com vitrinas que parecem bijuterias são onipresentes aqui. Cada doce tem sua época, mas podem ser encontrados durante o ano inteiro. O clímax do calendário é o Natal, durante o qual o cheiro dos doces típicos e tradicionais invade as ruas, como os bredeles, pequenos amanteigados recheados com pistaches, amêndoas, nozes ou passas; o kugelhopf, um bolo seco em forma de charlote coberto de frutas secas; a mannala, pequena brioche em forma de homenzinho servida no dia de São Nicolau no lanche das crianças.
Uma das características dos alsacianos é a simplicidade e a busca de autenticidade. Geralmente quando digo que moro na França, muita gente me responde: “Que chique!” Ledo engano. Os franceses em geral, e os alsacianos em particular, são pessoas simples que não gostam de ostentar. Levam uma vida singela, com hábitos inocentes e familiares. Aqui na Alsácia eles têm uma relação particular com a natureza, devido, possivelmente, ao seu clima continental onde as estações do ano são bem marcadas e exercem um papel central na vida social: as estações orientam nossos passeios, programas, os pratos que comemos e o cenário que nos envolve. E isso inclui as belíssimas cores do outono europeu.
Ah, as cores outonais… o outono começa em setembro, mas é em outubro que atinge seu apogeu. A paisagem é deslumbrante de uma variedade estonteante de amarelos, vermelhos, laranjas que vão progressivamente expulsando o verdor, mesmo se, no final, coabitam com o verde remanescente daquelas folhas que insistem em não cair mesmo durante o inverno. O sol ainda esquenta nosso corpo já envolto num friozinho gostoso. Agarramo-nos aos seus raios que sabemos serem os últimos a chegar pacificamente em nossos corpos antes da primavera.
Famílias e grupos de amigos organizam passeios nas florestas para colher cogumelos, castanhas ou nozes. Os cogumelos, a maior estrela da estação, são geralmente preparados na volta da colheita, quando nos reunimos em torno de uma poêlée de cèpes³ e um bom vinho tinto. É também a estação das diversas variedades de abóbora que usamos geralmente para um velouté com castanhas. Não é à toa que na tradição do Halloween imensas abóboras são usadas na decoração e nas fantasias, elas invadem as barracas de feiras e supermercados.
É também a estação das vendanges, a colheita das uvas, com suas festas de degustação de vinhos novos ou do vinho bourru, típico daqui. Esse vinho pouco conhecido é vendido ainda em fermentação, é pouco alcoolizado, bastante doce, e deve ser consumido rapidamente. Segundo a tradição alsaciana, ele é degustado com nozes e finas fatias de bacon frito.
No início do outono, o baile dos tratores ao qual assisto pela minha janela me diz que está na hora de cortar o milho, último sobrevivente dos verdejantes espaços pelos quais me deleitei de bicicleta durante a primavera e o verão, e preparar a terra enrolando o feno para alimentar os animais e encarar o inverno. Sei que está na hora de tirar os casacos dos armários e guardar as havaianas, que os piqueniques terão que esperar o mês de abril. As cegonhas desertam a Alsácia em busca do calor africano. Elas têm razão. O outono é uma preparação psicológica para o inverno, ele vai nos aclimatando para evitar um choque frontal que chega, impreterivelmente, duro e imponente.
Lembro bem do choque do primeiro inverno alsaciano ao ver pela janela o grande termômetro que ficava em frente da nossa casa, pensei que estivesse quebrado. Não estava. Lá fora estava realmente fazendo 15C negativos! Para uma carioca como eu que considera(va) 20C frio, quase deu em divórcio.
Esse dia ficou na minha memória. Estávamos recém-instalados na região, ainda meio perdidos com a tranquilidade do lugar depois de mais de dois anos envolvidos na frenesia asiática onde morávamos, quando descobri in loco esse dado surpreendente: a Alsácia é uma das regiões mais frias da França. Já era tarde demais para voltar atrás. Ao confirmar que não, o termômetro não estava quebrado, levantei-me bruscamente e, num tom autoritário, disse a meu marido: “Não vou ficar aqui!”. Claro que fiquei. Lá se foram nove anos.
O grande segredo nessas circunstâncias é saber domar o frio. Ou melhor, domar nossas apreensões relativas ao frio, instauradas por uma forma de cegueira cultural. É muito mais difícil do que se imagina liberar-se das amarras construídas por nosso sistema de valores. O fato é que nasci e passei mais da metade da minha vida no Rio de Janeiro, onde o sol e o calor são onipresentes. A praia e o que gira em torno dela são referências constantes na moda carioca, no vocabulário, no nosso jeito de ser e ver o mundo. Nesse primeiro contato com 15C negativos, vesti-me como se estivesse indo para a lua. Coloquei um antigo casaco de esqui, daqueles bem grossos (eles estão cada vez mais finos e coloridos), um gorro, luvas, botas e fui comprar pão andando em câmara lenta, como se não houvesse gravidade. Apesar de estar agindo como um astronauta, o alienígena ali era eu. As pessoas estavam vestidas normalmente, andavam normalmente e me olhavam quase normalmente: eu podia ver em seu olhar um não sei o que interrogativo.
Quebrar nossa visão de mundo e reconstruir o puzzle com novas peças, essa é a chave para se ser feliz, aqui e agora, onde quer que se esteja. Atualmente moro na cidade da França que fica mais distante do mar que tanto amo. Nenhuma outra fica, em quilômetros, mais longe da costa pelo sul, pelo norte, pelo oeste e, obviamente, pelo leste (em linha reta indo para o leste, o litoral mais próximo fica na Mongólia). Além de ser uma das mais frias. Meu marido escolheu muito bem minha prova de amor.
Hoje o inverno já não me assusta como antes. Integrei o frio no meu modo de vida e não fico mais contando os dias para a primavera chegar, embora, não vou negar, fico mais leve e feliz quando seus primeiros sinais se manifestam. Saio menos do que nas outras estações, mas vou caminhar mesmo com temperaturas negativas. Aprecio a beleza melancólica das paisagens invernais. Curto programas caseiros, como tomar chocolate quente com meu filho depois da escola, assisto em casa, embaixo das cobertas, aos filmes que perdi no cinema no decorrer do ano, leio mais, aprendi a dirigir na neve e a me vestir adequadamente, sem exageros. Sentiria falta da ausência de estações bem marcadas, dessa montanha russa de emoções provocadas pelas diferenciações impostas pela natureza. E principalmente, parei de comparar e buscar aqui o que tinha alhures. E quando os dias curtos e cinzentos me infligem abruptamente a saudade dos meus, fecho as cortinas, coloco uma música e me subtraio do mundo.
Notas do Editor:
1 – Enxaimel é uma antiga forma de construir entrelaçando caibros com os vãos preenchidos com tijolos ou taipas.
2 – Savoir-faire é o jeito de fazer em francês, ou “know how”, como se faz.
3 – Poêlée de cèpes são cogumelos fritos.
A cidade de Strasbourg (Estrasburgo) é a capital da Alsácia, uma região que ao longo dos anos alternou de posse, ora era da Alemanha, ora da França, daí que os lugares têm nomes na língua alemã. Em Estrasburgo fica a Sede do Parlamento Europeu.
Sobre a Autora: Lineimar Pereira Martins é antropóloga, tradutora e autora. No exercício da tradução, especializou-se em textos de Ciências Humanas e Sociais dentre os quais o grande clássico da sociologia histórica “Pão e Circo”, de Paul Veyne. Há vinte anos, Lineimar deixou o Brasil com mil dólares no bolso e sem nenhum contato no exterior para estudar na Europa e conta sua aventura no livro “Memórias de uma suburbana “dura” que decidiu morar na Europa”. Ela escreve para o blog Tradução e Culturas. Seu endereço para contato: lineimar@hotmail.com
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